Uma narração sobre Wadislau Martins Gomes

GOLPE, REVOLUÇÕES, FERIDAS E PAZ


NOTA: Quando junto com papai preparava este texto dele para publicação no coramdeocomentário, decidi que não poderia deixar de usar da prerrogativa de uma breve introdução editorial. O texto me trouxe lágrimas aos olhos... É meu pai, falando de meu pai e de uma história da qual ele não gosta muito de falar.  Não é meu pai falando apenas das coisas que Rev. Wadislau fala – coisas como Bíblia, teologia, igreja, a igreja no mundo e coisas do coração...  Esse é ele falando de dor, não só a dor já no passado, mas a dor de cicatrizes que ainda marcam seu corpo e seu coração.  Marcam também o meu, pois vivi parte desta história, ainda que nascido depois que a graça já havia alcançado o Lau, no acampamento Palavra da Vida, em 1964.  

Papai não diria isto, pois faz questão que esse texto não contenha suas reivindicações pessoais, mas eu gostaria de ver os documentos referentes à sua prisão, à tortura, os arquivos do DOPS e o escambau.  Oro por aqueles que denunciaram, prenderam e torturaram meu pai – até mesmo os verdugos do pau-de-arara... Oro também pelos seus antigos companheiros de luta – até mesmo os traíras que o deixaram para trás... Aprendi que posso orar por eles porque vi a graça de Deus que fez de meu pai o companheiro meigo e bondoso que hoje tenho na casa ao lado, na igreja e no coração.  Hoje, oro junto com ele pelo Brasil, na esperança de que o testemunho de nossos irmãos em Cristo ainda faça dele uma nação mais cheia daquela maravilhosa graça comum que Deus derrama sobre justos e injustos.

Davi Charles Gomes
Filho, irmão e amigo

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"Tratai todos com honra, amai os irmãos, temei a Deus, honrai o rei."  reza o princípio maior sobre minha vida (1Pe 2.17). Por isso, Senador Sarney, temo a Deus e trato-o, aqui, com honra de presidente. No entanto, por amor aos meus irmãos pela adoção no sangue de Cristo e aos do sangue brasileiro, não posso concordar com feridas mal tratadas. Certamente, uma das causas de vivermos tanta miséria e violência, e de experimentarmos frustração na aplicação de medidas corretivas, vem de um tipo cultural de politicagem e revisão histórica em que a impunidade é quase um hino nacional. A mesma lei maior, falando dessas causas e consequências, diz também: "Desde a planta do pé até à cabeça não há nele coisa sã, senão feridas, contusões e chagas inflamadas, umas e outras não espremidas, nem atadas, nem amolecidas com óleo" (Is. 1.6).

Não sou de "esquerda", "direita" ou "centro", nem "pós" ou "neo" coisa nenhuma; muito menos, "neutro" ou "amorfo". Hoje, com 66 anos, mantenho uma cosmovisão cristã que me permite transparência e modéstia na guarda do meu coração. Nem sempre foi assim. Quando menino, entre dezoito e dezenove, minha polivisão era uma gangorra em parque de diversões. Livros da estante de meu pai mostravam-me um mundo constitucional, enquanto um homem de leis e alguns amigos preocupados me apresentavam livros de um mundo em revolução. Optei pela mocidade. O discurso de defesa de Fidel tomou o lugar da minha Bíblia. Não é preciso dizer, aqui, que a revolta já havia comprado meu coração a preço absurdo de inflado.

Foi no dia 1º de Abril de 64 que a mentira me pegou. Garoto, civil posto para ser poema de Bilac no Tiro de Guerra, fui arrancado de o lado de meus pais, da fortaleza protetora de minha casa. Cães e homens de farda verde e de farda preta violentaram meu mundo como quem dita a vida! A cela da cadeia substituiu minha sala de aula. Seis presos condenados por crimes de outra ordem ensinaram-me o que significava ser "preso político". Deixando de lado tapas e chutes regados com saliva e sanha, aprendi que "quantas" e "contras", ambos os lados viviam revoluções. Graças a Deus, um preso com uma Bíblia e um diretor de presídio com uma pistola vieram em meu socorro contra agentes sem nome, sem documento e sem esperança.

A mesma graça de Deus que abriu meus olhos brasileiros como abriu o Mar Vermelho para os hebreus, e que usou o preso crente e o delegado consciente, fez-me também conhecer a paz de Cristo  paz com Deus e com os homens de boa vontade. Mudei. Passei a viver e a falar da esperança de um novo mundo sem revolta. Certamente, não porque temi a homens, mas por temor a Deus. Foi uma transformação sofrida, mais do que a de menino sendo aterrorizado com requintes de programa de TV moderno, instado a entregar qualquer um para que repetissem o delírio. A transformação de Cristo foi mais sofrida que as das revoluções sociais e violências individuais; teve traição, teve sangue, teve dor de ver o vergaste da mentira nas costas da realidade. Mas teve paz. Paz de ferida lavada, pensada, curada. As cicatrizes são provas de que sobrevivi.

Sete anos depois, já havia estudado a Palavra de Deus e coisas pertinentes à tarefa de ministro do Evangelho e cumpria meus deveres pastorais. Foi quando vi a igreja que visitava como pregador ser invadida por uma turba igual a que vira, antes, em casa. Fugi. Deixei mulher e filhos, a fim de buscar ajuda da sensatez. Entreguei-me a autoridade inteligente e manejei me safar de mais feridas brasileiras.

Aí, então, Senador com honra presidencial, é que eu pergunto. As feridas vão ficar aí? Mal lavadas? Purulentas? E olhe que não é só torturador que se pela de medo. Tem muita gente "boa" hoje, torturada, que se mela de medo que descubram a quem foi que entregou. Mas não tem nada não. Conto mais uma. Estava em um acampamento de jovens cristãos, e disse-lhes como o Senhor Jesus havia me tirado de propostas de lutas de poder inglórias, para os sofrimentos e glórias de sua luta. Logo depois, fui procurado por um senhor, uns quinze anos mais velho do que eu, que me mostrou uma fotografia. Custei a reconhecê-lo, tão mais novo no retrato. Mas quando vi em seus olhos a tristeza do passado e a esperança da alegria do presente no futuro de Cristo, eu soube o que fazer. Estreitei a mão do meu torturador e, juntos, limpamos a ferida.

Vamos lá, Senador Presidente! Cristo pode mudar sua visão sobre feridas e curas!

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